EXPERIÊNCIA COMO SUPERVISORA DE CAMPO NO DEPARTAMENTO JURÍDICO AOS ALUNOS DA GRADUAÇÃO

II JORNADA LEFE USP | SP, 2016.

Por: Andrea C. Morganti

 
 
 

 

Assim como o LEFE, o DJ é um projeto de extensão e é composto por estagiários de direito(EDir) da Faculdade São Francisco, que presta serviço jurídico à população de baixa renda. Há uma estrutura bem definida, organizada e coordenada pelos próprios alunos que contam com orientação de advogados formados sob esquema de plantão semanal; são esses mesmos advogados que assinam os processos jurídicos.

O estágio da psicologia no DJ, atravessado pela parceria histórica com aquela instituição e, afinados com a proposta do LEFE, organizou-se para atender à instituição em modelo de plantão psicológico semanal, com duração de duas horas por dia. Em todos os plantões eu supervisionava os estagiários de psicologia (EPsi) em campo. Isso incluía a supervisão clínica dos atendimentos bem como o cuidado à pessoa do estagiário: impossível tratar uma coisa sem estar implicada, indistintamente, a outra. No meu ponto de vista, essa é uma atenção essencial para o supervisor.

 

O pedido por um serviço de psicologia no DJ aconteceu porque se diziam preocupados em oferecer um atendimento de qualidade à população. Qual era o sentido desse pedido?  Desde o início sabíamos que, estando no modo do plantão psicológico, estávamos abertos para atender qualquer pessoa que nos chegasse desde que vinculada à instituição: os assistidos, os estagiários de Direito e a todos os atores institucionais. Esta parceria não se propôs a estruturar um serviço de Psicologia Jurídica, mas disponibilizar um espaço de atenção e cuidado dentro do DJ.

 

Em um primeiro momento, apesar de existir um pedido, não estava claro quando os estagiários da psicologia “deveriam" atuar. Era pouco sabido da nossa intervenção ali, e por isso, nem sempre nos chegava uma demanda explícita. Entende-se que uma instituição jurídica estava para atender a essas demandas: quem chegava à instituição chegava com um pedido direcionado à justiça. Descobrimos que nem sempre era assim. Se há uma situação onde a justiça deve ser acionada para que algo seja resolvido ou solucionado entre partes, está implícito um conflito inerente, no qual os envolvidos não dispõem das condições para lidarem com tal situação (podendo ser um outro ou o próprio Estado), sendo a parte jurídica uma ponta de todo seu enredo. Algumas dessas situações se apresentam com caráter absolutamente precários e violentos (como nos casos de abuso, violação da integridade física, disputa de guarda de filhos, abandono dos pais e não pagamento de pensão aos filhos…), que expõe a fragilidade do existir, a inospitalidade do que é ser uma pessoa no mundo que compreende regras, leis e acordos sociais para garantir uma mínima organização possível no viver em sociedade. Nesses casos, parecia ser mais fácil identificar a demanda para o plantão psicológico, embora fosse claro para mim que existiam outras demandas além dessas questões estereotipadas a serem desveladas com o tempo e atenção cuidadosa.

 

O contato de alunos de Psicologia com um serviço de atendimento em uma instituição não vinculada à saúde oferece a oportunidade de expandir o conhecimento sobre a contribuição da psicologia em espaços onde ela pareça menos óbvia, mas não por isso, menos relevante. Apresentava-se aí o começo do desafio: quais são as demandas, ou como atuar em plantão psicológico em um serviço jurídico? Dadas essas características peculiares da relação intrínsecadessa parceria, quase sempre as questões jurídicas-psicológicas se entrepunham não deixando claro para os estagiários as possibilidades de intervenção prática.

 

Percebemos que o pedido para ajudar o assistido era também um pedido de cuidado aos estagiários, jovens recém entrado na faculdade, ainda no embrião da vida profissional. Pouco sabiam lidar com as emoções despertadas com as dificuldades e enfrentamento humano em sua vã fragilidade despertadas no contato com os assistidos. Observávamos a dificuldade com que os EDir lidavam com o enfrentamento do sofrimento dos assistidos, sofrimento esse impassível de resolução prática. Esses jovens estudantes foram nos mostrando uma atitude de extrema necessidade em resolverem os problemas das pessoas que ali chegavam, mesmo que o problema apresentado implicasse em uma ação extra jurídica, como por exemplo, o acompanhamento em uma consulta médica. Fomos conhecendo o modo da preocupação desses estagiários: sentiam-se responsáveis por ajudar e resolver os problemas dos assistidos. Essa era uma diferença radical marcada no modo de cuidado da psicologia: enquanto os EDir atuavam no modo de uma preocupação substitutiva, os profissionais da psicologia resistiam em um cuidado liberador, que convoca o outro a cuidar de si mesmo, a achar os próprios caminhos com o recurso do pensamento meditante.

 

Era uma resistência manter a atenção no cuidado liberador e não sermos fagocitados para atender às necessidades da instituição, como os próprios EDir faziam com os seus assistidos. Fomos sendo convocados por diversos pedidos conforme fomos penetrando nos espaços, transitando e ocupando a instituição. Os pedidos geralmente chegavam com o objetivo de cumprir uma finalidade específica, como por exemplo otimizar o atendimento, aperfeiçoar o processo seletivo de novos estagiários, fazer um "treinamento de empatia". Os EPsis ficavam perdidos com tais pedidos, afinal, parecia que esses pedidos descaracterizavam os plantões psicológicos. Como supervisora me via na função de manter a escuta aberta e sustentar a tensão desses pedidos sem necessariamente atender a eles, mas tampouco rejeitá-los de imediato. Não se tratava de explicar que não estávamos para aquilo, mas de atuar dentro desse pedido, identificando sua demanda ao passo em que esclarecíamos o sentido daquele pedido. Sustentar essa tensão, pelo tempo que fosse preciso, nos oferecia a possibilidade de esclarecer o sentido do pedido e a nossa possibilidade de intervenção sem descaracterizar a atitude de cuidado. 

 

Nesse ponto faço uma observação importante: se a cada vez nos era solicitado um pedido de nova intervenção, isso revelava a confiança da instituição no nosso trabalho, independente do sentido que se desvelaria do pedido. Além de que, o fato de a nossa presença frequentemente mobilizar questões, me fazia acreditar que a circulação desses movimentos apontava para uma condição institucional saudável, diferente de processos adoecidos-rígidos-instituídos.

 

Sustentar essa tensão com os alunos da graduação nem sempre é fácil. Afetados pelo ritmo de agilidade em resolução de problemas e efetividade no modo de cuidado dos EDir, fui notando nos nossos estagiários uma contradição entre: 1. a preocupação de não descaracterizar a nossa ação como plantonistas versus 2. atender aos pedidos que nos chegavam. Percebia que quando os EPsi “só" atendiam como plantonistas, não raro ficava uma sensação de vazio, de terem feito pouco ou algo insignificante, de não terem realizado o que os EDir queriam, ou de não terem cumprido uma resolução prática como os EDir faziam. Validar uma prática da psicologia também é papel do supervisor. Favorecer a abertura de um campo na experiência é o lugar onde será possível compreender os espaços que articulam sentido para a intervenção da psicologia. Desse modo, a supervisora é a agente que deve cuidar para manter sempre à mão essa atenção; é quem corporeifica o diálogo entre instituições atendida e instituição de origem (LEFE) e trabalha na homeostase dessa interface. Assim caminhava para garantir que não desviássemos da nossa proposta sem enrijecer os processos, sem ensurdecer para a instituição.

 

Fui entendendo que o meu papel como supervisora era estar atenta não só ao pedido explícito mas também às demandas institucionais que se davam a ver em suas sutilezas. Isso permitiu uma visão mais ampla da instituição e abriu a preocupação e a necessidade de transitarmos mais livremente pelos espaços em uma disposição de serenidade. Nesse modo, pudemos ir construindo uma cartografia da instituição DJ: seus atravessamentos, seu modo de funcionamento, o modo como se davam as relações ali dentro e, como o fator tempo era um vetor fundamentalmente presente em todos os processos.

 

Estar inserido nesse contexto desperta a atenção para a escuta e intervenção psicológica em todas as situações experienciadas e testemunhadas na instituição, observando os atravessamentos psicológicos presentes nas relações dos alunos entre eles, entre a própria diretoria, e na relação com os assistidos. A presença do estagiário de psicologia no DJ oferece a oportunidade de analisar as perturbações sofridas pelas pessoas dessa instituição como um organismo-unidade como um todo, sensível às questões emergentes da e na instituição. Fomos acompanhando, em certo período, que uma situação grupal evidenciava os abalos histórico-sociais que afetavam a instituição. 

Se a nossa presença poderia oferecia aprendizagem e transformação, passei a observar em que medida também poderíamos aprender na nossa relação com eles e com o modo de funcionamento daquela instituição, tão diferente do ambiente da psicologia.

 

O modo de resolver as questões de maneira sistemática foge às características do plantão psicológico, mas me parecia uma boa oportunidade de trazer para os EPsi que a objetividade, que ter uma organização sobre alguns procedimentos de estágio e que são da ordem profissional, não contradizem as especificidades da psicologia, mas antes, favorece uma presença profissional e séria. É comum na faculdade de psicologia pessoas acostumados ao excesso de “compreensão” do outro, confundindo alteridade e sensibilidade com descompromisso e desrespeito. Ter uma postura profissional que transmita a seriedade do trabalho da psicologia é fundamental para conquistarmos espaço na sociedade e ganharmos o respeito pelo nosso ofício. Acredito que o ser psicólogo enfrenta ainda uma posição militante na sociedade de reconhecimento do nosso trabalho e valorização dessa profissão. Acredito ainda que o estigma que ainda enfrentamos, em grande parte, é fruto de um descompromisso que, disfarçado, se diz fugir da objetividade com explicações pífias de um subjetivismo vazio. Como se "a objetividade” fosse a vilã, e no entanto, firma-se como bode expiatório da falência de um trabalho bem feito.